Sair do Gineceu: um novo olhar sobre a Grécia antiga

Safo não é um mito

Por Boehringer, Sandra 

Sapho à Leucate

Fig. 1 : Antoine-Jean Gros, “Safo em Lêucade”, 1801, óleo sobre tela, 122 x 100 cm, Bayeux, Musée d'art et d'histoire Baron-Gérard. © Wikimedia Commons. Foto: DR.

Uma crença disseminada faz de Safo uma personagem mítica a quem os gregos antigos teriam atribuído a origem do amor entre mulheres. O que é um mito moderno.

Safo existiu: é uma poeta grega que viveu na Ilha de Lesbos entre o final do século VII e o início do século VI a.C. Nascida em uma família importante, mulher culta e célebre, ela tinha um lugar na vida política e cultural da cidade de Mitilene. Os fragmentos dos poemas que nos chegaram nos permitem mensurar a importância do seu renome desde a Antiguidade.

Na maioria de suas composições, destinadas a serem cantadas por ela mesma ou por um grupo de jovens mulheres, Safo faz falar um “eu” no feminino que evoca um amor, passado ou vindouro, por uma mulher. A lenda segundo a qual ela teria se jogado da rocha de Lêucade por amor a um jovem rapaz é uma invenção do poeta latino do século I, Ovídio, que atribui a Safo uma carta (fictícia) de amor a Fáon (Heroides, XV). Texto que, bem mais tarde, inspirou pintores e poetas românticos, dando início à lenda de uma Safo lésbica, mulher maldita, louca ou doente.

Safo, contudo, não inventou o amor lésbico, pois esse tipo de categorização não existia na Grécia antiga. No século VII a.C., o poeta espartano Álcman compunha cantos destinados a jovens mulheres (os partênios) nos quais eram expressos desejos eróticos entre mulheres. Safo, por sua vez, é muito célebre por seus poemas amorosos que colocam em cena uma mulher – com frequência uma encenação ficcional da própria poesia – apaixonada por outra mulher. O fr. 31 marcou a cultura ocidental (ele foi imitado, entre outros, por Catulo, Louise Labbé e Racine): Safo celebra a força de eros e descreve os efeitos do amor no corpo de uma pessoa apaixonada.

Nota:
Sobre a lenda construída em torno da personagem de Safo, ver DeJean Joan, Sapho. Les fictions du désir. 1546-1937, Paris, Hachette Supérieur, 1994 (trad. de Fictions of Sapho, 1546-1937, Chicago, University of Chicago Press, 1989).
Alcée et Sappho

Fig. 2 : Alceu e Safo. Face A de um kalathos (vaso com formato de cesto) ático de figuras vermelhas, 470 a.C. Origem: Acragas (Sicília). Pintor de Brigos. Beazley, ARV2, 385, 228; München, Staatliche Antikensammlungen, Inv. 2416. © Wikimedia Commons. Foto: Matthias Kabel.

Hydrie à figures rouges

Fig. 3: Hídria de figuras vermelhas, atribuída ao Grupo de Polignoto, 440-430 a.C., Museu Nacional Arqueológico de Atenas. Inv. 1260. © Wikimedia Commons. Foto: Marsyas.

Papyrus provenant de la bibliothèque de Cologne

Fig. 4: Papiro proveniente da Biblioteca de Colônia, datado do século III a.C. (11, 5 x 17 cm). P. Köln 21351+21376 (ed. M. Gronewald & R. W. Daniel, ZPE 154, 2005, p. 7-12).

Uma poeta reconhecida

Safo era célebre desde o século IV a.C.: vasos gregos a representam tocando cítara com companheiras ou na companhia do poeta Alceu. Os testemunhos papirológicos atestam que Safo figurou entre os primeiros “cânones” de autores importantes da Antiguidade. Um papiro com dois poemas foi descoberto nos Estados Unidos, em 2014 (P. Sapph. Obbink), outro, reproduzido logo abaixo e encontrado em 2004, em Colônia, permite que façamos a reconstituição de um canto no qual a poeta, através do mito de Titono, descreve os efeitos físicos do sentimento amoroso.

Bibliografia :
Boehringer, Sandra & Calame, Claude, “Sappho and Kypris. The Vertigo of love (P. Sapph. Obbink 21-29 ; P. Oxy. 1231 ; fr. 16)”, in Anton Bierl e André Lardinois, The Newest Sappho, P. Sapph. Obbink and P. GC inv. 105, frs. 1-4), Leiden & Boston, Brill, 2016, p. 353-367.
Plat polychrome

Fig. 5 : Prato policrômico, aprox. 620 a.C., exposto no Museu Arqueológico de Santorini (Grécia). © Foto: DR.

O prato representa duas mulheres frente a frente, uma delas toca o queixo da outra (tal gesto, representativo da corte erótica, é encontrado em numerosas outras representações – entre homens ou entre um homem e uma mulher – da época arcaica e clássica). As duas mulheres usam uma coroa de folhagem. A coroa é igualmente um presente erótico, que sinaliza um contexto festivo. A troca de olhares é ressaltada pela construção simétrica da cena.

O homoerotismo feminino na Antiguidade

Na Antiguidade grega e romana, as categorias de heterossexualidade e homossexualidade não existiam. Os antigos não consideravam que o sexo da pessoa desejada teria algo a dizer sobre a personalidade da pessoa apaixonada. Sendo assim, os termos “lésbica” ou “gay” não têm equivalentes em grego ou latim.

Na época de Safo, o amor entre mulheres é documentado, mas há menos registros nos séculos seguintes, nos quais as representações figuradas colocam em cena sejam casais de homens sejam de homens e mulheres.

De modo geral, são sobretudo os estatutos sociais e as modalidades da relação em si mesma que serviam de critérios de diferenciação para os antigos. Eros, por sua vez, atingia tanto homens como mulheres, independentemente do sexo da pessoa amada.

Bibliografia :
Boehringer, Sandra, L’homosexualité féminine dans l’Antiquité grecque et romaine, Paris, Les Belles Lettres, 2007.
Calame, Claude, L’Éros dans la Grèce antique, Paris, Belin, [1996] 2009.

O fragmento 31 de Safo

Parece-me ser par dos deuses ele,
o homem, que oposto a ti
senta e de perto tua doce fa-
la escuta,
e tua risada atraente. Isso, certo,
no peito atordoa meu coração;
pois quando te vejo por um instante, então fa-
lar não posso mais,
mas †se quebra† † minha † língua, e ligeiro
fogo de pronto corre sob minha pele,
e nada veem meus olhos, e zum-
bem meus ouvidos,
e água escorre de mim, e um tremor
de todo me toma, e mais verde que a relva
estou, e bem perto de estar morta
pareço eu mesma.
Mas tudo é suportável, já que †mesmo um pobre†...
 
Φαίνεταί μοι κῆνος ἴσος θέοισιν
ἔμμεν' ὤνηρ, ὄττις ἐνάντιός τοι
ἰσδάνει καὶ πλάσιον ἆδυ φωνεί-
σας ὐπακούει
καὶ γελαίσας ἰμέροεν, τό μ' ἦ μὰν
καρδίαν ἐν στήθεσιν ἐπτόαισεν·
ὠς γὰρ <ἔς> σ' ἴδω βρόχε' ὤς με φώνη-
σ' οὐδ' ἒν ἔτ' εἴκει,
ἀλλὰ †καμ† μὲν γλῶσσα †ἔαγε† λέπτον
δ' αὔτικα χρῶι πῦρ ὐπαδεδρόμηκεν,
ὀππάτεσσι δ' οὐδὲν ὄρημμ', ἐπιρρό-
μεισι δ' ἄκουαι,
†έκαδε† μ' ἴδρως ψῦχρος κακχέεται, τρόμος δὲ
παῖσαν ἄγρει, χλωροτέρα δὲ ποίας
ἔμμι, τεθνάκην δ' ὀλίγω 'πιδεύης
φαίνομ' ἔμ' αὔ[ται.
ἀλλὰ πὰν τόλματον ἐπεὶ †καὶ πένητα†

(ed. Voigt, trad. G. Ragusa. (2005). Fragmentos de uma deusa: a representação de Afrodite na lírica de Safo. Campinas: Editora de Unicamp.)