Privadas de cultura?

Por Dana, Madalina

Notice 8 Fig3. Sappho. Ath+-+nes.Inv. 1260.tif

Fig. 1 : Safo: Hídria de figuras vermelhas atribuída ao grupo de Polignoto, 440-430 a.C., Museu Nacional Arqueológico de Atenas. Inv. 1260. Fotógrafo: Giannis Patrikianos. ©Hellenic Ministry of Culture and Sports/Archaeological Receipts Fund. Foto: DR.

A imagem estereotipada da mulher grega difundida pelos autores clássicos é a da boa dona de casa, responsável pela boa gestão da casa desde muito nova: com 14 anos, uma jovem podia escrever uma lista de objetos domésticos (Xenofonte, Econômico, IX, 10). Seguindo o mesmo princípio, Teofrasto também aconselha dar às jovens uma educação letrada para que elas pudessem assumir melhor as responsabilidades domésticas. Por outro lado, Menandro afirma que educar uma mulher é “dar mais veneno a uma serpente” (F 702 Kock).

Alguns testemunhos mostram que a própria cidade poderia se encarregar da educação de seus futuros cidadãos, meninos e meninas (até um certo ponto) sem distinção. Assim, no século V a.C., Heródoto relata, em suas Histórias (VI, 27), o desespero dos habitantes de Quios quando o telhado da escola despencou sobre cento e vinte crianças que lá aprendiam as letras. É preciso notar que o historiador não especifica que se trata de meninos, o que nos faz pensar que a escola era mista. Três séculos mais tarde, uma inscrição em Téos na Ásia Menor menciona a fundação estabelecida por um cidadão abastado, Politrus, cujos rendimentos estavam destinados a financiar a educação dos mais jovens, meninos e meninas (Syll.3, 578). Pinturas em vasos representam jovens alunas aprendendo a ler e escrever, com tabuletas, styli ou rolos de papiro (1). No fim das contas, a educação das meninas, como a dos meninos, permanece uma questão de meio social. Na ilha de Lesbos, Safo (séc. VI a.C.), nascida de uma família rica e representante da poesia lírica ao lado do poeta Alceu (2), é a própria imagem da mulher de cultura (que hoje em dia chamaríamos de intelectual) (3).

Notas:
(1) Beck, Frederick A.G., Album of Greek Education: The Greeks at School and at Play, Sidney, Cheiron Press, 1975; sobre jovens mulheres, ver Bielman, Anne, “Une vertu en rouleau ou comment la sagesse vint aux Grecques”, in Regula Frei-Stolba, Anne Bielman, Olivier Bianchi (eds.), Les femmes antiques entre sphère privée et sphère publique. Actes du Diplôme d’Études Avancées. Universités de Lausanne et Neuchâtel, 2000-2002, Berne, Peter Lang, 2003, p. 79-81.
(2) Ver Yatromanolakis, Dimitrios, Sappho in the Making: The Early Reception, Washington, D.C.: Center for Hellenistic Studies, Trustees for Harvard University, 2007.
(3) Zanker, Paul, The Mask of Socrates: The Image of the Intellectual in Antiquity, University of California Press, Berkeley-Los Angeles-Oxford, 1995; Bottini, Angelo (ed.), Musa pensosa. L’immagine dell’intellettuale nell’antichità, Milano, Electa, 2006.
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Fig. 2 : Lisandra (Bizâncio). Mármore de estela funerária, séc. I a.C, The J. Paul Getty Museum, Inv. 75.AA.49. © The J. Paul Getty Museum. Foto: DR.

Mulheres com rolos de papiro

Mulheres eruditas são frequentemente chamadas de “amigas das Musas”, patronas de toda a atividade literária, artística ou científica, a tal ponto que cada uma das poetas mais célebres é designada como “a décima Musa”. Ora, na arte, as Musas são representadas com um rolo de papiro ou uma tabuleta na mão, símbolos da atividade intelectual. Sobre as estelas funerárias do período helenístico, o rolo de papiro sobre a mão dos defuntos é equivalente à referência às Musas no texto do epigrama. As mulheres aparecem quase sempre associadas a seus maridos em atividades de leitura, nas cenas de banquete: o homem, estendido sobre um leito (kline), segura com uma mão um rolo de papiro desenrolado pela metade; a mulher, sentada na ponta da kline ou sobre uma cadeira, segura em uma mão seu véu, com uma atitude de reserva, e na outra mão, ela também segura um rolo ou uma tabuleta. Uma estela proveniente de Bizâncio (séc. I d. C.) mostra, no entanto, uma cena inédita, pois não é o homem, nem os dois esposos, mas a mulher sozinha que é representada com um rolo na mão. Ainda mais notável, apenas o nome da mulher está inscrito: Lisandra, filha de Doles, um patrônimo de origem trácia (I. Bizantion 368). Sentada em uma poltrona imponente, semelhante aos assentos de honra no teatro, a defunta segura na mão esquerda um volumen de grandes dimensões parcialmente desenrolado sobre seus joelhos. Assim, podemos perguntar o que essa representação revela  sobre as esposas em Bizâncio, tão cultas quanto seus maridos, mas também sobre a valorização de status que daí decorre para a família.

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Fig. 3: Mármore de estela funerária, séc. II a.C., Archeological Museum of Istanbul, Inv. 4033. Foto: DR.

Esta célebre estela, erguida do final do séc. II a.C. em Sardes, em honra de Menofila, filha de Hermâgenes (SEG IV 634), é um exemplo ainda mais precioso por conservar-se singular no mundo grego. À esquerda, vemos rolos amarrados e um cesto de lã; abaixo desses objetos foi grafada a letra alfa (que equivale ao número 1); uma flor de lis é representada no alto à direita; sobre a cabeça da jovem mulher, percebemos uma coroa. O epigrama oferece uma verdadeira chave de compreensão da imagem: “Uma elegante e preciosa mulher, eis o que mostra esta pedra. Quem é ela? Os escritos das Musas o revelam: Menofila (...). O livro indica sua sabedoria, o que ela usa na cabeça evoca sua magistratura, o número 1 mostra que era filha única, o cesto de lã é indício de sua virtude bem ordenada, a flor de lis testemunha sua juventude”. O texto afirma que a defunta possuía sophia (saber, sabedoria), dada pelas Musas, e estabelece uma relação entre essa sophia feminina e os rolos de papiros. Essa sabedoria não é a sophrosyne, que consistia, para as esposas, em saber gerir a casa e criar uma progenitura, mas exatamente aquela que os livros conferem. Menofila era filha única, e foi em virtude disso que ela exerceu a stephanephoria (lit. “porte da coroa”), uma magistratura muito importante em Sardis: sua família provavelmente colocou todas as suas esperanças nessa descendente, que acumula os direitos e obrigações de um herdeiro homem. Além disso, a cidade lhe presta honras com a organização de funerais públicos.

Notice 4 Fig4. Mousa. Istanbul.Inv. 5029.tif

Fig. 4 : Musa (Bizâncio): Estela funerária de mármore, séc. II a.C. Museu Arqueológico de Istambul, Inv. 5029. Foto: DR.

Às vezes, no entanto, o rolo de papiro pode indicar não só a educação ou o interesse pelo saber e pela cultura, mas também pode ser símbolo de um ofício. É o caso da iatreine (médica) chamada Musa, filha de Agatocles, de Bizâncio (I. Byzantium 128), a única na iconografia da sua cidade a ser representada sozinha e não na típica cena de casal. Ela está de pé, na postura convencional do letrado, com o véu em uma mão, em atitude reservada que convém a uma mulher de status, e um rolo de papiro na outra. A relação entre seu nome, Musa, a menção à sua profissão e o volumen de papiro é inegável. Ela tem um Berusfsname (“nome de ofício”), que indica sem nenhuma dúvida, quando sabemos que a transmissão do saber médico se dava em âmbito familiar, que ela vem de uma família de médicos. Tal nome é compatível com a presença do rolo de papiro, que remete ao domínio que essa mulher possuía da arte (techne) médica. Embora suas habilidades fossem sem dúvida mais amplas que as de uma simples parteira (maia), o exercício de sua profissão se inscrevia em uma esfera de atividade bastante próxima. De fato, uma “ginecologista” antiga era uma médica geral que se dedicava principalmente a uma clientela de mulheres e crianças, o que não deixa de ser um ofício de interesse público.

Um espaço público para mulheres cultivadas

Para compreender a representação de mulheres sozinhas com rolos de papiro sobre as estelas, é preciso colocar esses monumentos em seu contexto, quer dizer em um espaço e em uma época. Estudos recentes propõem a “intelectualização” dos retratos do cidadão na imagística do período helenístico tardio. À imagem canônica da leitura – um jovem rapaz lendo –, é acrescentado no séc. II a.C. o motivo da jovem garota representada se ocupando da mesma atividade. Se, no período helenístico, o rolo de papiro simboliza a cultura (pela qual as pessoas modestas podiam, a partir de então, almejar), também é o símbolo de uma revolução de gênero: a cultura ocupa um lugar cada vez mais importante no repertório que valoriza as defuntas.