Não-cidadãs?

Por Guicharrouse, Romain; Sebillotte Cuchet, Violaine

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Fig.1 Estela de Fenipo e Mnesarete, cerca de 350 a.C., Atenas. Mármore A: 1.47m/ L: 0.91 m/ P: 0.17m. Número de entrada: MNB 1751 (n. usual Ma 767), aquisição: 1879. Museu do Louvre. Foto © RMN-Grand Palais (Museu do Louvre) / Hervé Lewandowski.

Athenaioi: frequentemente os historiadores traduzem esse termo pelo plural masculino, “os atenienses”, ou até mesmo pela fórmula “os cidadãos de Atenas”. Ora, os contextos gregos em que Athenaioi ocorre nos permitem saber que, não raro, a palavra designa um grupo de homens e mulheres livres que habita a cidade. O masculino-neutro que apaga a presença das mulheres muitas vezes levou a pensar que a comunidade da cidade (polis), a comunidade política, concernia apenas, do ponto de vista grego, aos homens. Além disso, a noção contemporânea de cidadania foi construída no período moderno, em um contexto revolucionário amplamente inspirado pelos textos teóricos e políticos de filósofos, historiadores e moralistas gregos (como Aristóteles, Tucídides, Plutarco). Em suas reflexões, eles se interessavam pouco pelas mulheres e, quando era o caso, o faziam para engrandecer o papel esperado daquelas que deviam ajudar seus esposos e seus filhos a se dedicarem à política e à defesa da cidade natal.

Foram necessários os trabalhos desenvolvidos por historiadoras, no século XX, para que se colocasse a questão da participação das mulheres livres das cidades na vida coletiva (1). Duas conclusões foram obtidas:

1/ A cidadania, na Grécia antiga, é uma cidadania de participação que põe no mesmo plano todos os atos da vida coletiva e, sobretudo, a vida religiosa.

2/ As mulheres livres, nascidas e reconhecidas como filhas em uma família de cidadãos, são designadas como atenienses (no feminino), cidadãs (sg. politis; pl. politides) e submetidas às mesmas injunções comportamentais que os cidadãos: respeitar as normas da cidade. Evidentemente, a exclusão do voto e das assembleias deliberativas diferencia as cidadãs dos cidadãos. No entanto, como os Gregos não definem a cidadania unicamente pelo direito ao voto, seria anacrônico deduzir daí que elas não são cidadãs.

Nota:
(1) Para uma síntese recente dos debates, ver Sebillotte Cuchet, Violaine, “Ces citoyennes qui reconfigurent le politique. Trente ans de travaux sur l’Antiquité grecque,” Clio FGH, 43, 2016, p. 185-215.
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Fig. 2: Estela funerária de Choirine, mármore, Atenas, cerca de 370-360 a.C. Foto: ©Trustees of the British Museum.

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Fig. 3: Decreto do sacerdócio de Atena Nike, Atenas, cerca de 450-420 a.C., Museu da Acrópole, Atenas (EM 8116). Deste lado o decreto descreve o procedimento de sorteio entre todas as atenienses (anos 450-455 ou anos 420). Copyright Acropolis Museum. Foto: Socratis Mavromatis.

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Fig. 3 bis: Decreto do sacerdócio de Atena Nike, Atenas, cerca de 450-420 a.C., Museu da Acrópole, Atenas (EM 8116). Este outro lado da estela mostra o salário pago à sacerdotisa (em 424/423 a.C.). Copyright Acropolis Museum. Foto: Socratis Mavromatis.

Sacerdotisas: figuras-chave da comunidade

Com a chave do templo em sua mão, a sacerdotisa Choirine é quem garante o bom funcionamento de um culto cujo destinatário divino hoje ignoramos. Seu caso não é isolado. Em Atenas, as mulheres são sacerdotisas, da mesma forma que os homens (1). Elas são escolhidas entre as grandes famílias detentoras de privilégios religiosos ou, a partir do séc. V a.C., às vezes sorteadas entre todas as atenienses (Athenaiai). Este procedimento mostra que as atenienses constituem um grupo bem identificado, diferente daquele das estrangeiras e das não-livres: elas são cidadãs (politides). Na qualidade de sacerdotisas, as atenienses têm autoridade no santuário, impõem o respeito às regras, às vezes dispõem de um orçamento e de uma remuneração alocados pela cidade. Quando de sua saída do cargo, tal como os sacerdotes e, de modo mais geral, como todos os magistrados, elas prestam contas diante do povo (no Conselho). Em geral, elas são então acompanhadas por um membro masculino da família. Como a piedade era parte da boa conduta cidadã, as sacerdotisas atenienses podem ser consideradas magistradas, mesmo que esse tipo de magistratura seja particular, uma vez que o sacerdócio é o único tipo de magistratura aberto às mulheres. Estelas funerárias erguidas nas margens das vias ou leis grafadas e exibidas na Ágora, como este decreto para o sacerdócio de Atena Nike, são lembretes cotidianos de seu importante papel para o bem-estar e, até mesmo, para a salvação, da coletividade.

Nota:
(1) Marie Augier, “Nommer les prêtresses en Grèce ancienne”, Clio FGH, 45, 2017, p. 33-59.
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Fig. 4: Fragmento da placa chamada "ergastinas" (tecelões), friso leste do Partenon (Atenas), mármore pentélico com traços de policromia, por volta de 445-435 aC., Museu do Louvre (Ma 738), Paris. © Wikimedia Commons. Foto: Marie-Lan Nguyen.

Cidadãs em festa: as Panateneias

Todos os anos acontece, em Atenas, uma grande festa em honra de Atena, divindade políade (1), as Panateneias. Havia competições, seguidas de uma procissão e sacrifícios. Na procissão, as mulheres exercem papéis importantes. Este relevo, do friso das Panateneias sobre o Partenon, mostra as ergastinas (à direita), jovens garotas que teceram o peplos, o manto oferecido à Atena com o qual se vestia sua estátua durante a festa. As mulheres também participavam de certas etapas do rito sacrificial: à esquerda, duas canéforas (portadoras de cesto) carregam a faca sacrificial. Assim, elas ocupam um lugar importante na organização dos sacrifícios que terminam com um banquete cívico, no qual a participação direta das mulheres parece rara (2). A procissão e os sacrifícios são essenciais para o bem-estar da cidade: eles permitem estabelecer e reafirmar a concórdia entre si e com os deuses. Através da participação em diferentes festas públicas, dentre as quais algumas lhes eram até mesmo reservadas (Tesmoforias em honra de Deméter), as mulheres livres de Atenas, jovens e adultas, contribuem para a vida e salvação da cidade e são, como tais, cidadãs.

Notas :
(1) Divindade políade: cada cidade grega tem uma divindade tutelar, dita políade. Em Atenas, esta divindade é Atena, que deu seu nome à cidade. Porém, isto não impede os Gregos de fazerem preces a outros deuses durante outras festas anuais.
(2) Decreto que organiza as pequenas Panateneias, Inscriptiones graecae. Inscriptiones Atticae Euclidis anno posteriores, Editio tertia. Pars I., De Gruyter-Berlin, 2012-2014.
 
Referência :
IG II/III3 1.447, l. 40-41 (Inscriptiones graecae. Inscriptiones Atticae Euclidis anno posterioresEditio tertia. Pars I., De Gruyter-Berlin, 2012-2014).

O feminino de cidadão existe!

Quando alguns oradores questionam a cidadania de uma mulher, eles empregam o termo politis, que é o feminino de polites, sempre traduzido por “cidadão”. No discurso sobre a Herança de Ciron, conservado no corpus de discursos de Iseu, o litigante do discurso se defende: “Se estas mentiras fazem vocês acreditarem que nossa mãe não era cidadã (πολῖτις), nós também não o somos”. O litigante do discurso pronunciado contra Eubulides também explica: “Além do mais, atenienses, é evidente que meu pai não foi seu primeiro marido, mas, sim, Protômaco, que dela teve filhos, inclusive uma filha dada em casamento. Ainda que ele esteja morto, seus atos testemunham que minha mãe era ateniense e cidadã (politis).” (Demóstenes [57], Contra Eubulides, 43). A palavra também aparece nas Leis de Platão, quando o ateniense explica: “Estabeleçamos, então, esta lei (nomos) que as mulheres (gynaikes) não devem negligenciar tanto os exercícios militares e que todos, cidadãos e cidadãs – τοὺς πολίτας καὶ τὰς πολίτιδας –, devem se ocupar deles” (Leis 814c). Aristóteles lembra que “na prática”, as cidades gregas definem como cidadão um indivíduo “nascido de dois pais cidadãos (politai), e não só de um, pai ou mãe" (Política III, 1275b21-22). As mulheres são cidadãs pelo pertencimento às mesmas famílias que os cidadãos, mas, contrariamente a eles, elas não exercem funções deliberativas, judiciárias ou governamentais.