Cleópatra, femme fatale?

Por Veïsse, Anne-Emmanuelle

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Fig. 1 : Gustave Moreau, Cléopâtre, 1887, Musée du Louvre, département des Arts graphiques (inv. RF 27900). © Wikimedia Commons. Foto: Shuishouyue.

Última representante da dinastia dos Ptolomeus, que reinou no Egito de 305 a 30 a.C., a rainha Cleópatra VII (51-30 a.C.) foi uma das raras mulheres a exercer um poder oficial pessoal na Antiguidade(1). Apesar disso, seu reino é pouco documentado pelas fontes diretas e a imagem popularmente associada à soberana é essencialmente derivada da propaganda implementada por Otávio, futuro Augusto, quando do seu confronto com Marco Antônio (2). Com o intuito de silenciar a verdade sobre esse confronto – um novo episódio das Guerras civis e uma luta pelo poder em Roma –, a guerra contra Antônio foi justificada pela aliança deste último com a rainha do Egito. No grupo de Otávio, essa aliança foi apresentada como um acordo indigno, no qual um homem se encontrava submisso a uma mulher, um romano a uma estrangeira, um antigo servidor da República a uma déspota que conspirava pela sua derrota. Disso decorre diretamente dois dos principais traços que permaneceram vinculados à figura de Cleópatra, desde a Antiguidade: seu poder de sedução e seu caráter egípcio. Essas duas imagens encontram-se reunidas nesta aquarela de Gustave Moreau (1887), que representa uma Cleópatra quase desnuda, em um cenário egípcio. A serpente que ascende rumo ao seu pulso direito permite associar erotismo e morte.

Notas :
(1) Oficialmente, Cleópatra VII reinou com seu irmão Ptolomeu XIII (de 51 a 48 a.C.), depois com seu outro irmão Ptolomeu XIV (48-44 a.C.) e, por fim, com seu filho Ptolomeu XV César (44-30 a.C.), mas a partir de 48 a.C., ela aparece em primeira posição nos protocolos oficiais e não há dúvida de que ela tenha realmente exercido poder.
(2) M. Chauveau, Cléopâtre, au-delà du mythe, Paris, Liana Levi, 1998; os três capítulos consagrados à Cleópatra por J. Bingen, Hellenistic Egypt. Monarchy, Society, Economy, Culture, R. S. Bagnall (ed.), Edimbourg, Edinburgh University Press, 2007; F. de Callataÿ, Cléopâtre. Usages et mésusages de son image, Bruxelles, Académie royale de Belgique, 2015.

A sedutora

Se não há dúvida quanto à realidade das relações de Cleópatra com Júlio César (de 48 a 44 a.C.) e depois com Marco Antônio (de 41 a 30 a.C.), a imagem de sedutora vinculada à soberana vem, em grande parte, da rivalidade, que se transformou em guerra, entre Otávio e Marco Antônio. Para Otávio, apresentar Marco Antônio como um homem completamente submisso à rainha do Egito e transformado em um simples instrumento das ambições dela era uma forma de negar a legitimidade de seu governo em Roma. Tal ideia é expressa de modo enfático por vários autores latinos, cuja visão dos fatos foi nutrida pela propaganda otaviana: “Cleópatra subjugou Antônio completamente” (Plutarco, Vida de Antônio, 28, 1); “É assim que uma mulher egípcia pede, a um general embriagado, o Império romano em troca de seus favores” (Floro, Compêndio, IV, 11); “Apaixonado por Cleópatra, que ele havia avistado em Cilícia, [Antônio] não teve cuidado algum com sua honra; tornou-se escravo da egípcia e passou a ocupar-se apenas de seu amor por ela (Dião Cássio, História romana, 48, 24). Desde a época de Otávio, Cleópatra foi também acusada de ser uma “rainha prostituída” (meretrix regina) que se oferecia a seus escravos (Propércio, Elegias, III, 11). Além do opróbrio evidente sobre a soberana, essa acusação provavelmente tinha o objetivo de marcar com um sinal de infâmia o nascimento de Ptolomeu XV, o filho que a própria Cleópatra afirmara ser de Júlio César (e que provavelmente era). Os autores posteriores completaram a imagem de uma rainha dotada de uma sensualidade insaciável, a exemplo do autor anônimo de Homens ilustres da cidade de Roma (final do século IV d.C.), para quem “muitos homens deram suas vidas por uma de suas noites” (Homens ilustres, 86). A ideia inspirou a trama da novela de Théophile Gautier, Une nuit de Cléopâtre (1838), que fez muito sucesso na França.

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Fig. 2: Cleópatra VII, representada como Ísis no Templo de Hator de Dendera, atrás de seu filho Ptolomeu XV César, representado como faraó. © Wikimedia Commons. Foto: Bradipus.

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FIG. 3: Moeda de Cleópatra, 51-30. © CoinArchives.com, foto DR.

A egípcia

“O abominação! Sua esposa egípcia o acompanha” (Virgílio, Eneida, VIII, 688).

Como todos os soberanos da dinastia lágida, Cleópatra era uma princesa de origem macedônia e de cultura grega. No contexto egípcio ela foi, contudo, representada como Ísis, assim como as rainhas ptolomaicas que a precederam. Tal é o caso no muro externo sul do Templo de Hator, em Dendera, no qual ela aparece atrás de seu filho Ptolomeu XV representado como faraó. Esse tipo de representação se inscreve na continuidade de uma política posta em prática desde os primeiros Ptolomeus, que por intermédio da retomada das tradições faraônicas, visava a reforçar sua legitimidade junto aos seus súditos egípcios. Mas esse caráter egípcio da dinastia manifestou-se apenas em contextos bastante particulares. Nas moedas reais, é uma outra face da soberana que aparece: em uma iconografia puramente grega, Cleópatra, portadora do título de basilissa (rainha), usa a tiara, emblema de todos os reinos helenísticos. Como mostrado pelo historiador J. Bingen, o epíteto inédito Philopatris, “que ama sua pátria”, adotado pela rainha em 37/6 a.C., era de fato uma referência explícita à sua pátria macedônica (1). Se a literatura romana, derivada da propaganda otaviana, acabou por consagrar Cleópatra como a “egípcia”, foi para melhor representá-la como inimiga de Roma. Não é possível sequer afirmar que a rainha soubesse falar egípcio(2). Essa ideia apoia-se em uma célebre passagem de Plutarco, que deve ser reconsiderada em contexto: a descrição feita pelo autor do primeiro encontro entre Cleópatra e Marco Antônio, em Tarso, no inverno de 41 (Vida de Antônio, 27, 3-5). Plutarco pretende demonstrar aí todo o potencial erótico do “comércio” com a rainha Cleópatra: uma voz cujo próprio timbre é fonte de prazer, uma conversa sedutora que estabelece um contato direto com seus interlocutores, sem a mediação de intérpretes. É nesse contexto que ele atribui a Cleópatra o conhecimento das línguas de praticamente todos os povos orientais que são conhecidos pelos gregos: etíopes, trogloditas, hebreus, árabes, sírios, medos e partos. Essa passagem coloca muitas questões, mas não diz muito sobre as competências linguísticas reais – quaisquer que elas tenham sido – da última rainha do Egito.

Notas:
(1) Jean Bingen, “Cleopatra VII Philopatris”, in Roger S. Bagnall (ed.), Hellenistic Egypt. Monarchy, Society, Economy, Culture, Edimbourg, Edinburgh University Press, 2007, p. 57-62 (= “Cléopâtre VII Philopatris”, Chronique d’Égypte 74, 1999, p. 118-123).
(2) Anne-Emmanuelle Veïsse, “Pouvoir royal et diversité linguistique en Égypte sous les Ptolémées (323-30 av. J.-C.)”, dans J.-L. Fournet, J.-M. Mouton, J. Paviot (dir.), Civilisations en transition (II): Sociétés multilingues à travers l'histoire du Proche-Orient, Byblos, Centre International des Sciences de l’Homme, p. 67-93.

“Com efeito, dizem que sua beleza em si mesma não era incomparável nem sujeita a maravilhar aqueles que a viam, mas seu comércio familiar tinha um trato irresistível, e o aspecto de sua pessoa, somado à sua conversa sedutora e à graça natural dispersa por suas palavras, trazia consigo uma espécie de atrativo. Quando ela falava, o próprio som de sua voz proporcionava prazer. Sua língua era como um instrumento dotado de muitas cordas, que ela tocava no dialeto que ela queria, nos seus contatos com os bárbaros ela raramente precisava de intérprete: ela respondia a maior parte deles sem qualquer ajuda, por exemplo, aos etíopes, aos trogloditas, aos hebreus, aos árabes, aos sírios, aos medos e aos partos. Dizem que ela sabia ainda muitas outras línguas, enquanto os reis que a precederam não tinham nem mesmo se dado ao trabalho de aprender o egípcio e outros haviam até mesmo esquecido o macedônio.”

Plutarco, Vida de Antônio, XXVII, 3-5.

Cleópatra, femme fatale?